de Franz Kafka.
Nova traduçao de Erlon José Paschoal.
"Depois que Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, ele não estava tão só nos desalinhos da sua metamorfose. Com esse personagem, e a misteriosa situação que Franz Kafka pacientemente descreve ao leitor, foi a literatura que também se transformou, causando uma espécie de abalo sísmico, um terremoto na forma de se contar estórias. Originalmente publicada em 1915 na revista Die Weißen Blätter, A Metamorfose é daqueles eventos incontornáveis, das raras narrativas curtas que subitamente habitam o imaginário das fábulas mundiais. Quem nunca ouviu, espiou ou mesmo se flagrou contando a estória de Gregor?
Nos quadrinhos, no cinema, nas artes visuais, nas memes, no gênero de terror, Gregor Samsa é um personagem icônico, agudamente atual. Logo no primeiro parágrafo dessa estória de Kafka, Gregor percebe que virou um horrível inseto, com várias patas, que pouco a pouco aprende a andar para trás, para os lados, em várias direções; que prefere ficar no teto, de ponta cabeça, e que se assusta com a fome que o transtorna, o cheiro que sente das comidas prestes a estragar, a maneira como se esconde debaixo do canapé do seu pequeno quarto. Antes de ser esse inseto, Samsa trabalhara como um caixeiro-viajante e, até despertar dos seus sonhos, naquela manhã, se dá conta que acordou tarde demais para o trem no qual deveria ter embarcado.
Na sua nova condição de inseto, nada disso ganha importância, e o cotidiano fica distante. O emprego, o chefe, o salário, as conversas com a família, sua mãe, seu pai, Greta, a irmã mais nova, a empregada, tudo que é humano, e que antes ele amava, agora lhe causa medo, repulsa, e até uma estranha melancolia, como nos instantes que sua irmã toca violino na sala, e ele quer se emocionar com a melodia. Sua voz ganha tons metálicos. Ele entende a língua dos humanos, mas sua família não compreende as palavras que ele se esforça para pronunciar. É nesse hiato da linguagem que Kafka revela-se exímio. Entocado no seu quarto, Samsa vive a experiência de ser um outro ser, um outro ente, mas que agora vira um ser vivo visto como monstruoso aos olhos humanos, aos afetos da sua família.
O mais grave da metamorfose de Samsa não é ele ter se transformado num inseto, numa outra coisa, numa coisa que não consegue ser vista como um sujeito, mas é de precisar conviver (e aceitar) a repulsa, o nojo, o asco, a indiferença e a desejada morte que sua família, depois de meses, deixa de ter vergonha de sentir. Ao ser um monstro para os outros, os horríveis humanos – ou apenas um inseto na sua mais íntima percepção, Gregor espelha a incapacidade de qualquer família, tida como “normal”, lidar com a diferença, o desvio, com aquilo que foge das convenções. Nas entrelinhas, Kafka sugere que monstruosos são aqueles que não aceitam a metamorfose das pessoas que antes julgavam amar.
De forma inusitada e primorosa, Kafka narra a experiência dessa insólita metamorfose. Inevitável sentir um constante frio na barriga em cada detalhe, nas minúcias das descrições, nos pensamentos que perpassam aquela casa, nos meses que correm durante a esquisita (e por vezes cômica) desumanização de Gregor. O escritor tcheco, vinculado às tradições judaicas de Praga, construiu uma alegoria concreta, material, uma espécie de Golem íntimo, um monstro que ronda o mal-estar moderno, contemporâneo, um mal-estar na linguagem que, tal como um vírus, se instala naqueles que se transformam e em todos aqueles que não suportam as metamorfoses dos outros."
Pablo Gonçalo
Prof.Dr. da Faculdade de Comunicação da UnB